segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Lições Hondurenhas

De Everardo Maciel no Blog do Noblat:
Honduras é um país pobre e pequeno, que se notabilizou como “República das Bananas” – caricata imagem cunhada pelo escritor americano O. Henry para salientar sua condição de republiqueta governada por políticos corruptos e submissa às vontades da United Fruit Company. Entrou no foco das atenções mundiais pela deposição do Presidente Manoel Zelaya, latifundiário eleito pelas forças conservadoras daquele país e que se deixou encantar pela retórica e pelos petrodólares do Presidente Hugo Chavez. Zelaya foi destituído por decisão da Corte Suprema, cumprida pelas Forças Armadas, após frustradas tentativas de convocar um plebiscito, sem poderes para tal, desafiando abertamente decisões tomadas pela Justiça e pelo Congresso Nacional. À sua destituição, seguiram-se a declaração de vacância do cargo e posse do sucessor em conformidade com a linha sucessória estabelecida pela Constituição. Ressalvada a deportação de Zelaya, todas as medidas seguiram um rito absolutamente legal. Essa ilegalidade, todavia, não elide o crime de traição à pátria, capitulado na Carta Magna hondurenha, cuja pena é a imediata destituição do cargo ocupado. Além disso, o presidente deposto é réu em 18 ações, propostas pelo Ministério Público, algumas das quais por indícios de crime de corrupção. Seus aliados políticos saquearam residências e casas comerciais, para não falar dos que invocaram Hitler e sua perseguição aos judeus. O histórico golpista latino-americano sancionou entendimento de que ocorrera um golpe de estado, merecedor de condenação. No contexto de uma governança mundial, ainda imberbe, essa condenação evoluiu para aplicação de sanções econômicas, não reconhecimento do governo empossado e exigências intervencionistas para “restituir” Zelaya à Presidência. A imensa maioria dos que condenaram o episódio, entretanto, não se debruçou sobre a legislação constitucional hondurenha, tampouco sobre os fatos que precederam a deposição. Reclamaram da inobservância de processos aplicáveis a seus países, sendo incapazes de perceberem diferenças históricas que explicam construções jurídicas distintas e que a Constituição de Honduras estava em vigor há 27 anos, tendo sido aprovada em ambiente democrático. Qualquer jejuno que compulsar aquela Constituição vai constatar (art. 239) que a vedação à reeleição é cláusula pétrea. Qualquer iniciativa com esse objetivo implica imediata destituição das funções ocupadas pelo infrator e suspensão dos direitos políticos por dez anos. É completa ingenuidade ou má fé não perceber que Zelaya tinha um claro propósito de perpetuar-se no poder. Para tanto, faria uso de qualquer meio, inclusive a via plebiscitária, na condição de aplicado discípulo da doutrina Chavez – uma espécie de cesarismo extravagante. Admitamos, só para argumentar, que se entendesse como ilegal a destituição de Zelaya. Nesse caso, a via adequada seria o recurso à própria Corte que procedeu àquele ato. Recusar essa hipótese significa entender como ilegítimos os Poderes Judiciário e Legislativo daquele país. Por que, então, julgar legítimo o Governo de Zelaya, eleito e destituído, em conformidade com o mesmo ordenamento jurídico no qual foram constituídos aqueles Poderes? Surpreendente é a postura assumida pelo Brasil, principalmente, e por inúmeros outros países, em franca oposição aos princípios da não intervenção e autodeterminação dos povos, consagrados universalmente. Clamam contra a Constituição de Honduras, esquecendo de salientar que ela representa a vontade soberana do seu povo. Não exigem, entretanto, que o Reino Unido venha a ter uma constituição escrita, em respeito à tradição jurídica daquele país. Não se sentem minimamente incomodados com, entre outras, as ditaduras de Cuba, Coréia do Norte, Líbia, Gabão, Zimbábue, Mianmar. Não revelam o menor interesse pelo genocídio do Sudão, o banditismo na Somália ou a fragmentação do território da Geórgia. Centram suas atenções apenas em Honduras, porque esse país é pobre, pequeno e sem importância geopolítica, podendo converter-se em experimento descartável de governança global. Honduras, contudo, poderá dar uma boa e digna lição de democracia ao mundo se conseguir manter-se na absoluta fidelidade à lei, mesmo se a solução para a crise for um arranjo político que consiga aplacar os intentos golpistas de Zelaya e seus tutores, a fúria dos insurgentes locais e a cínica indignação internacional.
*Everardo Maciel é ex-secretário da Receita Federal

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