NESSUN DORMA - A ária de Puccini é a trilha sonora escolhida por Macedo (em primeiro plano) como método de concentração antes das cirurgias. (Foto-Egberto Nogueira/IMA Foto Galeria/VEJA).
O paulistano Antonio Luiz de Vasconcellos Macedo
faz 750 cirurgias por ano, marca imbatível no Brasil. Por zelar por seu corpo
como zela pelo de seus pacientes, ele desenvolveu uma dieta e um programa de
atividades físicas que o mantêm forte — e com mãos seguríssimas — em longas
jornadas nas salas de operação
"Opera como um Deus", dizem dele os melhores
médicos do Brasil. Acusam-no de operar demais, em casos desnecessários, mas é
puro despeito, dito quase em tom de brincadeira, para tentar explicar os
recordes do cirurgião paulistano Antonio Luiz de Vasconcellos Macedo, de 65
anos, do Hospital Albert Einstein. São 750 cirurgias por ano, portanto sessenta
mensais, duas por dia. Ele calcula já ter realizado pelo menos 20 000 operações.
São números quase inacreditáveis, que o próprio Macedo, avesso a qualquer
celebração pública, homem discreto e calado, compara a feitos dos esportes. Diz
ele: "O cirurgião não é um atleta, mas é solicitado como se fosse".
Para, pensa e busca no ar uma metáfora ainda mais esclarecedora de sua rotina:
"A cirurgia exige esforço semelhante ao de uma maratona". Macedo se
comporta como um campeão olímpico para fazer jus à sua fama de craque dos
bisturis, especializado em aparelho digestivo. Para Ben-Hur Ferraz Neto,
cirurgião de fígado e pâncreas lotado na Universidade de Birmingham, na
Inglaterra, outro que não descansa, Macedo "tem uma força de trabalho tão
espetacular que é difícil para qualquer jovem acompanhá-lo".
Por considerar sua atividade como a de um
esportista, Macedo faz do cotidiano uma travessia espartana. Um único toque de
alarme do despertador, às 6h30, de segunda a segunda, o tira da cama. Uma
xícara grande de café puro e amargo é a primeira refeição. A caminho do
hospital, ouve no carro alguma peça para piano de Mozart ("calma",
descreve) ou preferencialmente Nessun Dorma, ária de Puccini, na
voz de Luciano Pavarotti, porque dali em diante nada de dormir. Mentalmente
desenha o que fará durante o dia. A depender da técnica utilizada na cirurgia,
ele terá de ficar sentado, praticamente imóvel, ao longo de seis horas. É assim
no caso dos procedimentos robóticos, quando manipula um equipamento com 3
metros de altura e quatro braços compridos de metal que farão as vezes das mãos
humanas sobre o corpo do paciente, o que é comum na extração de tumores no
pâncreas, nos rins e nos intestinos. Em operações convencionais, não é raro ele
permanecer por nove horas em pé, manipulando o doente.
Meticuloso, preciso, cuidadoso, Macedo trata de seu
corpo como se fosse o de seus pacientes. Ao se aproximar dos 60 anos, sentiu
uma natural queda no vigor. Sofria com gripes constantes, que chegavam a
incomodar durante vinte dias. O pequeno sinal de debilidade dificilmente
afetaria a qualidade do trabalho. Mas foi o suficiente para que o médico
mudasse o estilo de vida de maneira drástica. Passou a devorar artigos
científicos sobre alimentação, atividade física e taxas sanguíneas. Estudioso
compulsivo, leu 25 pesquisas científicas. O objetivo era criar um programa de
saúde personalizado que lhe permitisse recuperar a disposição para as longas e
duras jornadas de trabalho. Como não havia um Macedo que tratasse dele, fez
tudo solitariamente.
Um dos maiores desafios era permanecer por horas a
fio em jejum sem ficar com fome nem se sentir fraco. A questão foi resolvida da
seguinte forma: passou a seguir a ferro e fogo o jejum, sem concessão nem mesmo
à badalada barrinha de cereal. A medida teve como base o princípio fisiológico
de que em longos períodos de privação alimentar perde-se a fome. Há uma lógica
- o hábito do jejum faz com que o organismo fabrique um produto químico chamado
corpo cetônico. Esse composto, feito de gordura corporal, tem duas funções
primordiais. Uma delas é dar energia ao coração e ao cérebro ante a carência
alimentar. A outra é inibir a ação do hipotálamo, região cerebral
administradora da fome. Macedo ainda queria evitar mais uma condição resultante
do consumo de alimentos durante a cirurgia. Comer estimula a liberação de
serotonina no cérebro, substância do relaxamento, atalho para a perigosa
desatenção.
A alimentação do cirurgião é regradíssima. Macedo
adotou um programa inspirado na chamada "dieta paleolítica". Criado
em 1975 pelo gastroenterologista americano Walter L. Voegtlin, o regime prega
um retorno à alimentação dos homens pré-históricos. Dez anos depois, os médicos
americanos Melvin Konner e Boyd Eaton consolidaram o modelo em artigo na
revista The New England Journal of Medicine: só se devem ingerir os
alimentos que nossos ancestrais consumiam. Incluem-se carnes magras, frutas,
raízes e vegetais. Excluem-se os produtos industrializados. Macedo faz raras
exceções. Vez ou outra come quatro quadradinhos de chocolate amargo e degusta
duas taças de vinho. Evita ao máximo o sabor dos alimentos feitos com farinha
branca, os chamados carboidratos simples. Os compostos aumentam subitamente a
taxa de insulina, o hormônio que carrega a glicose para dentro das células. O
pico da substância no organismo estimula a fome.
O médico ainda precisava ganhar músculos na medida
certa para um cirurgião. Sem exageros, portanto. Braços pesados demais podem
atrapalhar o manejo dos instrumentos. Para isso, Macedo passou a seguir um
programa específico de exercícios. Praticada em uma academia montada no porão
de casa, a musculação não vai além de meia hora. Períodos mais longos estimulam
no organismo a produção de hormônios que prejudicam a formação do tecido
muscular. A ginástica é feita sempre à noite. O esforço pela manhã causa
pequenos tremores temporários nas mãos, algo inimaginável para um cirurgião.
Macedo está habituado aos desafios, e às tentativas
de superá-los, desde os tempos de menino. Aos 12 anos, ao cair de um cavalo,
sofreu uma paralisia do lado direito do rosto. Logo depois do acidente, seus
pais acharam que o "sorriso de lado" era uma imitação de John Wayne,
o ator predileto do filho. Descobriu-se mais tarde ser uma lesão incontornável,
diagnosticada por um médico amigo da família. O acidente fez Macedo seguir a
medicina, para entender como funciona o organismo humano e que há poesia entre
sangue e músculos. A correção associada à timidez faz de sua agenda um livro
fechado - e, ao contrário de um mau hábito disseminado, ele se recusa a citar o
nome de famosos que passaram por suas mãos (Silvio Santos, Fausto Silva, Dercy
Gonçalves e Ana Maria Braga, entre tantos outros). Ele apenas aceitou aparecer
em fotografia ao lado de Hebe Camargo, em 2012, a quem operara para a extração
de um tumor cancerígeno na região abdominal, porque a força de persuasão da
apresentadora era lendária - e só ela mesmo poderia quebrar o gelo de um homem
incapaz de brilharecos, mas sinônimo de certeza e segurança. Nas palavras do
prêmio Nobel de Literatura Saul Bellow (1915-2005), mestre em entender os
desvãos do ser humano: "Com um romancista, como com um cirurgião, você tem
de ter a sensação de ter caído em boas mãos - alguém de quem você pode aceitar
o anestésico com confiança".
*Por Natalia Cuminale, na Veja
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